A mais recente tem um nome simbólico, “Só por Deus”
Fonte: Campo Grande News
Nos últimos 30 dias, quatro comunidades em Campo Grande nasceram da falta de teto. Sem dinheiro, o cimento das paredes pagas com aluguel é substituído pelos tapumes dos barracos, levantados “do dia pra noite”.
A mais recente tem um nome simbólico, “Só por Deus”. No Jardim Canguru, há menos de um mês um terreno onde havia um campo de futebol foi ocupado. Hoje, são aproximadamente 40 famílias e 100 crianças vivendo ali.
“As pessoas estão desempregadas e a maioria não tem mais dinheiro para pagar o aluguel”, conta Marcos Rodrigues, conhecido como “Batata”, 43 anos, um dos representantes dos moradores.
Batata era açougueiro, mas está desempregado. Basta uma pequena andada pelas “ruas” abertas pela própria população para ver que o cenário não é exceção.
“Sou pedreiro, mas não estou conseguindo serviço e não consegui pagar o aluguel e vim pra cá”, conta Edson Cássio da Silva, 33 anos, que levantou um barraco de madeira e lona para abrigar seus três filhos.
Batata, que já viveu também na favela Cidade de Deus e hoje funciona como uma espécie de porta-voz da Só Por Deus, diz que o terreno é da Semadur (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano) e que agentes da Prefeitura já estiveram no local.
“Já tivemos reuniões, mas nenhuma posição favorável, apenas tentativas de desocupar o terreno. Não estamos nem pedindo casa, só queremos um pedacinho do terreno para construir”, desabafa o açougueiro, que conta que tanto a Semadur como a Emha (Agência Municipal de Habitação de Campo Grande) já estiveram no local.
A Prefeitura foi procurada para explicar se o terreno é mesmo municipal, mas não respondeu às duas tentativas de contato feitas pela reportagem.
A Só Por Deus é mais uma de uma lista de novas favelas que pipocou por Campo Grande desde o início de setembro. No Tijuca, são 30 famílias em uma área que também seria pública.
No Izabel Garden, são 248 barracos numerados, a maior parte ocupado por ex-moradores da Portelinha, favela que ficava à margem do Segredo, que não foram beneficiados por programas sociais. Já na saída para Três Lagoas, um terreno do Bairro Panorama recebeu 60 famílias em três dias.
O curioso é que espaço não falta em Campo Grande, uma cidade onde, segundo a UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul), há 35% de espaço vazio no perímetro urbano.
O modus operandi é quase sempre o mesmo: um grupo de pessoas chega a um terreno desocupado, carpe o mato, abre o loteamento e começa a subir as estruturas de madeira que virarão barraco. Alguns conseguem energia com ligações irregulares, mas a maioria não conta com infraestrutura.
“Vivemos em um estado com desigualdade brutal. Além da concentração da renda, há uma má distribuição da terra, então a pessoa não tem nem emprego nem terra”, conta o antropólogo Guilherme Passamani, professor da UFMS.
Além das condições precárias de vida, quem não tem alternativa a não ser o barraco enfrenta o preconceito da sociedade. “Historicamente, a favela é vista como lugar degradado, como se não existisse dignidade, como se a pessoa fosse culpada por estar na favela, mas a culpa é de outros setores, especialmente do Estado, que não prevê políticas habitacionais”, explica Passamani.
Políticas fracassadas
Se todas as pessoas que estão na fila na esperança de conseguir uma casa por meio de projetos habitacionais fossem contempladas hoje e colocadas em apenas um bairro, ele seria o terceiro maior em população de Campo Grande. A cidade tem praticamente um Aero Rancho inteiro nesta situação.
Atualmente, são pelo menos 32 mil pessoas cadastradas na Emha (Agência Municipal de Habitação) em busca de uma moradia, segundo a Prefeitura. O problema é que essa fila só aumenta e “anda” cada dia mais devagar.
Enquanto em 2014 foram entregues 3.337 unidades habitacionais, entre casas e apartamentos, em Campo Grande, no ano passado o número caiu para 1.686 casas, segundo dados do governo Estadual. Neste ano, até o momento, não houve entrega de moradias por parte do governo na Capital.
Já conforme informações da prefeitura, em 2016, o único projeto habitacional, com a entrega de imóveis, foi a transferência das famílias da Cidade de Deus para 390 lotes, em quatro bairros.
Em agosto, quando entregues, as moradias de 46 metros quadrados do Vespasiano Martins ainda não tinham acabamento interno. Isso, segundo a prefeitura, por opção da própria comunidade.
Cada imóvel desse conjunto custou R$ 12 mil e o terreno onde as famílias foram instaladas R$ 24 mil. O valor poderá ser pago por cada morador em 300 parcelas de R$ 120.
Sem teto, as famílias da Cidade de Deus que foram para o Canguru dormem em barracos construídos nos fundos de cada loteamento. (Foto: Fernando Antunes)
No Canguru, outro bairro onde seriam construídas as unidades habitacionais para os moradores da Cidade de Deus, mais de seis meses depois, nem teto as casas têm. “Ainda falta o acabamento em todas as casas e três ainda faltam construir. Já pagamos as contas, mas a dignidade que tanto nos prometeram, nada”, resume Edileuza Luiz, 37 anos, fundadora da Escolinha Filhos da Misericórdia, que atende crianças carentes da região.
Os materiais e a mão de obra eram responsabilidade da ONG (Organização Não-governamental) Morhar, que recebeu R$3,6 milhões para executar os trabalhos em quatro loteamentos montados pela Prefeitura para remover as famílias da Cidade de Deus. Já no Bom Retiro, as unidades habitacionais deveriam ter sido entregues no dia 10 de setembro.
Os pedreiros de ambas as construções pararam o serviço nessa semana porque não recebem há 45 dias. Eles também denunciam o trabalho sem equipamento de proteção, registro em carteira ou amparo legal.
No mutirão assistido, maneira como as casas do Canguru e Bom Retiro estão sendo construídas, a Prefeitura banca 40% da construção e o morador paga os 60% restantes parcelados junto ao valor do terreno, que é de 10x20m.
Com mutirão ou não, a fila por uma casa parece longe de andar. Mesmo o Minha Casa Minha vida, que já beneficiou muita gente, mudou regras em maio deste ano e estabeleceu novos critérios técnicos para seleção e contratação de propostas e financiamento, questão que, segundo o diretor da Emha, Dirceu Peters, contribui para a redução dos programas de habitação.
“Falta investimento do governo federal, que além de não investir, mudou as regras do ‘Minha Casa Minha Vida’, o que acabou impedindo que muita gente fosse beneficiada”, explicou.
Ainda segundo o diretor, este ano não há previsão de entrega ou construção de nenhum outro conjunto habitacional.
O governo do Estado informou, por meio da assessoria de imprensa, que tem obras habitacionais em andamento nos residenciais Rui Pimentel e Jardim Canguru, totalizando 532 casas. No entanto, não há previsão de prazos para que as casas sejam entregues.