Fonte: ConJur
Na rua Oscar Freire, em São Paulo, estão as vitrines de algumas das grifes mais caras do mundo e restaurantes com chefes da moda. E é numa de suas esquinas (com a alameda Casa Branca) que se desenrola um caso judicial novelesco, envolvendo uma situação, no mínimo, inusitada: ocupação e pedido de usucapião de uma casa de meio milhão de dólares.
O imóvel, originalmente pertencia a uma italiana que morreu em 1999. Seus herdeiros, que vivem na Itália, venderam a casa para um grupo de empresários em 2010 e não souberam dizer se nesses 11 anos o imóvel havia sido ocupado. Os empresários, da área de gastronomia, fizeram o registro no 23º Tabelião de Notas de São Paulo.
Com a ideia de abrir um restaurante no local, os compradores solicitaram à Sabesp em 2010 a religação de água para o imóvel. Segundo o órgão, o serviço não era utilizado há sete anos. Na época, os técnicos da Sabesp foram recebidos por um dos sócios compradores para o serviço.
Já em 2013, um dos sócios, Francisco Antonio Corasio Fagundes, foi informado que haviam invadido a casa. Ao registrar o boletim de ocorrência contra o invasor, o empresário descobriu que o corretor de imóveis Luiz Carlos Russi havia requerido, 15 dias antes, usucapião da casa.
Russi alega que encontrou o casarão abandonado e por lá resolveu ficar. Não apenas morando, mas usando o espaço para ser a sede de sua corretora de imóveis. Isso, segundo ele, desde o final de 1998, antes mesmo de a italiana vender a casa.
Fetiche, por Portinari
A disputa entre o grupo de empresários e o corretor de imóveis começou. Na ação, o corretor é representado pelo advogado Carlos Ely Eluf, já conhecido em São Paulo por suas ações de usucapião. Além da advocacia, Ely Eluf também é um especialista em artes — também em 2013 ofereceu uma recompensa de R$ 20 mil para que recuperasse a obra Fetiche, de Cândido Portinari, que alega ter sido roubado da sala de sua casa e substituída por uma réplica.
O contra-ataque não demorou. Os empresários entraram com uma ação de reintegração de posse. Até o momento, a Justiça manteve a posse do imóvel com Luiz Russi, com base nos depoimentos de testemunhas. De acordo com os desembargadores da 22ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, o grupo de empresários não conseguiu comprovar a posse, “muito embora as circunstâncias que teriam legitimado o ingresso do réu (Luiz Carlos Russi) no imóvel e sua própria condição de permanência não sejam claras”.
O corretor alega que detém a posse mansa e pacífica do imóvel, inclusive utilizando o local para atender seus clientes, sem nunca ninguém contestar sua posse. Diz ter feito inúmeras obras lá, além de pagar todos os tributos referentes ao imóvel, mesmo aqueles em nome de terceiros.
Para comprovar que habitava a mansão, apresentou, em juízo, notas fiscais de serviços e produtos com datas da época. Contudo a defesa do grupo do empresários contesta a veracidade dos documentos. Uma das notas é de uma empresa que não funciona há 10 anos e que o suposto proprietário declarou em cartório ser falsa. Outro proprietário de empresa que teve nota fiscal juntada nos autos também afirma que nunca executou serviços em São Paulo.
Há ainda uma nota de uma empresa de Ribeirão Preto referente à compra de alimentos, produtos de limpeza e higiene. Ao buscar a loja onde teria sido feita a compra, a defesa dos empresários encontrou uma residência que, segundo a proprietária, nunca foi comércio. Além disso, o dono da companhia que teria emitido a nota declarou que o tipo de letra e numeração da nota não condizem com as máquinas de numeração daquela época — e garante que o documento não saiu da empresa dele.
Ely Eluf se defende nos autos, alegando que a outra parte tenta se enriquecer às custas de Luiz Russi, invertendo as verdades do fato. O advogado aponta que apesar de mencionar que as notas são falsas, a outra parte em nenhum momento suscitou incidente de falsidade sobre tais documentos.
Testemunhas em discussão
A confusão sobre a posse não chega perto do caos que se instalou na situação das testemunhas do caso, de lado a lado. Os empresários questionam algumas testemunhas arroladas, que dizem ter estreito vínculo de amizade e profissional com o advogado Carlos Ely Eluf.
Duas testemunhas nesta ação, por exemplo, participaram, como posseiro e testemunha, em outro processo de usucapião vencido por Ely Eluf de um imóvel da alto nível Morro da Península no Guarujá, litoral paulista. Lá o advogado construiu uma mansão com seis suítes, sendo a principal com 100 m2, que aluga para temporadas na internet. Outras testemunhas também mantém vínculo com o advogado, seja como amigo, seja como cliente de Eluf.
Além disso, há nos autos também a acusação de aliciamento e corrupção de testemunhas. Em um dos casos, a testemunha afirmou ter recebido R$ 800 para prestar declaração orientada.
De outro lado, uma das testemunhas afirmou que foi assediada pela advogada Lair Moura, uma das responsáveis pela defesa do grupo de empresários. Questionada pela ConJur, a advogada afirmou que jamais teve qualquer contato com a testemunha que fez a acusação. Lair afirma ainda que pediu providências ao Tribunal de Justiça de São Paulo para que, diante dos fatos, instaure inquérito policial para investigar a questão.
Pobre e dono de imóvel
Apesar de estar na Justiça disputando a posse de um imóvel em uma área nobre de São Paulo, Luiz Russi apresentou nas ações declaração de insuficiência econômica, inclusive alegando que recebe o Benefício da Prestação Continuada, com objetivo de conseguir Justiça gratuita.
O BPC é a garantia de um salário-mínimo mensal ao idoso acima de 65 anos ou ao cidadão com deficiência física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo, que o impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas. Russi conseguiu o direito ao benefício em 2013, pouco antes de entrar com o processo de usucapião.
A pobreza, no entanto, é contestada pela defesa dos empresários que, inclusive, entrou com denúncia de fraude junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Nela, juntou documentos que comprovariam que Russi é proprietário de um imóvel no bairro de Moema, com três pavimentos, sendo cada um locado por mais de R$ 4 mil.
Entre outros documentos, demonstram que inconsistência nas declarações de Imposto de Renda do corretor imobiliário, que, em 2012, declarava a posse do imóvel em Moema e de outro em São Paulo, onde mora com sua mulher. Na declaração de 2014, os bens não aparecem mais, sem que tenha sido declarado o destino dos mesmos.
A defesa dos empresários também apresentou denúncia ao Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil contra o advogado Carlos Ely Eluf com os mesmos argumentos apresentados nas ações judiciais: aliciamento e corrupção de testemunhas, confusão entre advogado e cliente, fraude processual e litigância de má-fé. Mas o processo foi arquivado. Inconformada, a defesa apresentou recurso, alegando que a responsável pela decisão deveria se declarar suspeita, uma vez que patrocinou causas em conjunto com Eluf.
O advogado Carlos Ely Eluf foi procurado pela reportagem da ConJur, mas, por meio de sua secretária, informou que não vai falar sobre o caso envolvendo o imóvel da Alameda Casa Branca. Também não respondeu a questionamentos sobre outros casos de usucapião — nem se recuperou seu Portinari.