Fonte: A Tarde

No último final de semana de maio, Antônio Conceição pôs em uma sacola seus pertences e deixou para trás o prédio em que morava e onde mantinha uma bombonière. Quando chegou ali, em 2007, o sobrado desocupado de três andares já ostentava  rachaduras. Nada comparado a uma marca recente, a fenda lateral que acendeu o alerta em Conceição. “Melhor passar um aperto do que morrer”, diz o comerciante, que, guiado pelo conselho de amigos, mudou-se para um pensionato ao lado. Abandonou o prédio abandonado: número 25, Rua Conceição da Praia, outrora sede de bancos e hotéis.

Uma linhagem de renúncias e desamparos marca a história do Centro Antigo de Salvador, região que engloba 12 bairros (incluindo o Pelourinho) e conta com, aproximadamente, 80 mil habitantes, uma população cerca de 40% menor do que a que havia em 1970. A dinâmica da cidade, que levou o centro financeiro para outras regiões, a ausência de políticas integradas de conservação do patrimônio arquitetônico e proprietários e herdeiros que somem na burocracia de inventários desenham o lugar.

Mas o Centro Antigo da cidade está longe de ser ermo. Nas encostas do Pilar, Taboão, Lapinha e Santo Antônio, novos cortiços vêm surgindo, seguidos pela ocupação de imóveis ociosos e em ruínas. No Comércio, próximo ao Elevador Lacerda, inquilinos pagam R$ 250 de aluguel a “proprietários de palavra”, como são chamados os homens e mulheres que se apossam dos restos das construções. Uma pequena babel marca o nascedouro do Brasil.

 

500

Este é o número aproximado de imóveis abandonados no Centro de Salvador

 

“Talvez seja o caso de chamarmos de jabuticaba; algo bem brasileiro”, diz a urbanista e historiadora Isabel Álvares, que, entre 2012 e 2014, se debruçou sobre a região para construir sua tese de doutorado. No texto, de quase 200 páginas, está o que Álvares e muito de seus pares acreditam ser a dificuldade para resgatar o centro das cidades brasileiras da degradação. “Não há regras claras, e o poder público ‘bate cabeça’. É como se cada instância – municipal, estadual e federal – falasse uma língua”, diz. “Nesse aspecto, o Centro Antigo de Salvador é o maior exemplo”.

Fronteira

Com cerca de 500 imóveis abandonados, segundo dados da prefeitura, o Centro de Salvador tem apenas um regramento definido, estabelecido pela Constituição de 1988. Nela, lê-se que o “poder público, com a colaboração da comunidade”, é protetor do patrimônio cultural. Vago, o artigo 216 da Carta trata da preservação de bens imateriais e materiais – este último, o caso dos centros históricos das cidades brasileiras.

Sem uma legislação definida e unificada, órgãos de diferentes instâncias de poder abraçam a causa da preservação do legado arquitetônico. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), instituído em 1937, tem atuação federal. No caso de Salvador, somam-se ao Iphan o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) e a Companhia de Desenvolvimento Urbano (Conder), ambos estaduais. No âmbito municipal, há ainda a Secretaria de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur) e a recém-criada Diretoria de Gestão do Centro Histórico.

No campo das leis, a responsabilidade de manutenção dos imóveis no Centro Antigo é do proprietário e, se ele não tiver condições financeiras, do Ipac ou do Iphan, a depender de qual órgão tenha sido responsável pelo tombamento. No campo da prática, a maior parte dos edifícios em ruínas no centro não possui sequer proprietários identificados. Assim, os órgãos públicos põem mais uma característica no horizonte: estruturas metálicas que escoram as construções cambaleantes.

Concebidos como instâncias responsáveis pela conservação da arquitetura tombada (como é a quase totalidade do Centro Antigo de Salvador), o Iphan e o Ipac alegam que não possuem poder para retirar moradores ou mesmo para investigar o paradeiro dos verdadeiros proprietários, uma responsabilidade do poder municipal. Esse, por sua vez, alega a dificuldade em estabelecer contato com os donos e a lentidão dos processos de retomada dos imóveis (espécie de estatização dos prédios abandonados).

 

Os centros históricos são uma fronteira tríplice e envolvem órgãos de todas as instâncias. Mas os gestores estão ligados a partidos e a grupos políticos diversos. Isso dificulta a orquestração

Edvaldo Vivas, coordenador do Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (Nudephac), do Ministério Público

 

“Opera-se com uma política de tombamento e escoramento. Mas o escoramento é uma coisa provisória, não é para ficar dez anos, como no caso da Ladeira da Soledade”, diz Edvaldo Vivas, coordenador do Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (Nudephac), do Ministério Público, lembrando o caso de um casarão tombado que desabou sobre uma casa, em abril, matando três pessoas e deixando duas feridas. “Os centros históricos são uma fronteira tríplice e envolvem órgãos de todas as instâncias. Mas os gestores estão ligados a partidos e a grupos políticos diversos. Isso dificulta a orquestração”.

O Nudephac, criado em 2009, é a mão do Judiciário na questão. O órgão atua de duas formas: no caso de construções com risco de desabar, provoca, via liminar judicial, o Ipac e o Iphan a providenciarem o escoramento; no caso de construções escoradas, e que já apresentam novos riscos, move uma ação civil pública para que os órgãos competentes revitalizam o lugar. Desde que nasceu, porém, o Nudephac só conseguiu três sentenças impondo a revitalização.

“É um processo demorado e implica considerar o orçamento público, a verba que os órgãos de proteção ao patrimônio têm para fazer a intervenção”, diz Vivas. “No entanto, não é verdade que o Ipac e o Iphan ficam de mãos atadas quando os donos não são localizados. Há ações judiciais pelas quais esses órgãos poderiam solicitar a entrada no imóvel para realizarem uma revitalização, ainda que mínima”.

 

A atração de comerciantes e a possibilidade de retomar o controle dos imóveis são ações importantes, mas, sozinhas, têm impacto reduzido

Tânia Scofield, presidente da Fundação Mário Leal Ferreira

 

Integração

No final do ano passado, a prefeitura de Salvador pôs em pauta um projeto para o centro, batizado de Revitalizar, como forma de responder à acusação das instâncias federal e estadual de que o poder municipal, como dono do solo da cidade, tem atuado com negligência na questão.

O projeto, que prevê a concessão de descontos em tributos a empresários e comerciantes que se instalarem na região e realizarem reformas, segue em discussão na Câmara. Mas uma proposta complementar já virou lei: à prefeitura foi dada a permissão de se apropriar de imóveis abandonados que, após cerca de cinco anos, não tenham recebido intervenção. “A atração de comerciantes e a possibilidade de retomar o controle dos imóveis são ações importantes, mas, sozinhas, têm impacto reduzido”, diz Tânia Scofield, presidente da Fundação Mário Leal Ferreira, instituição ligada à Sedur e responsável por projetos de planejamento urbano. “As intervenções já realizadas em áreas históricas nos mostram que é preciso um programa integrado, que olhe, também, para a atração de novos moradores e para a mobilidade urbana. Esses são os próximos passos que devemos dar”.

Tanto gestores municipais quanto estaduais já mencionam a necessidade de um programa de habitação voltado ao centro,  que aproveite os imensos espaços vazios que caracterizam a região. O modelo, já testado em muitas cidades no mundo, tem um exemplar, ainda infante, no Brasil. Desde o ano passado, em Belo Horizonte (MG), sete mil moradias foram disponibilizadas na área central. A Sedur e a Conder, no entanto, não antecipam metas claras ou prazos para implantação de programa semelhante em Salvador.

Moradia

Em relatos históricos, os centros das cidades são quase sempre identificados como o lugar mais dinâmico da vida urbana. Nos documentos  de meados do século passado, porém, a noção de centro começa a se diluir com o surgimento de  subcentros, que passaram a concorrer com o  principal. Esse processo foi responsável pela aceleração da deterioração das regiões históricas, que se tornaram, na Europa e nos Estados Unidos, objetos de preocupação desde a década de 50.

No Brasil, a revitalização passou a ser discutida de modo mais intenso após os anos 70. Num primeiro momento, os planos urbanos incentivaram a substituição dos sobrados e casarões por prédios modernos – como os que foram construídos no Comércio. Num segundo momento, a partir da década de 90, gestores públicos colocaram em prática projetos que visavam à dinamização, com ênfase no turismo, em detrimento do uso habitacional. É desta época a maior intervenção já realizada no centro de Salvador.

 

Todas as intervenções analisadas se mostraram pouco sustentáveis. As populações foram expulsas para as periferias

Tereza Peixoto, urbanista

 

“Trata-se de uma intervenção que, iniciada em 1992, converteu o Pelourinho em uma das atrações turísticas mais conhecidas e visitadas do país, criando uma cidade-espetáculo, de casarios de muitas cores, mas também promoveu um grande esvaziamento de sua ligação com a própria cidade”, diz a urbanista Tereza Peixoto, autora de um estudo que avaliou a sustentabilidade de longo prazo dos projetos de revitalização de seis centros históricos do Brasil – Salvador, São Luís, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre – realizados entre 1990 e 2010.

Na pesquisa, Peixoto escreve 37 vezes a palavra “gentrificação”, o processo de enobrecimento de uma área, no qual habitantes são expulsos para regiões distantes por não conseguirem arcar com novos custos de vida, sobretudo aluguéis. No caso de Salvador, por exemplo, a última grande intervenção no Pelourinho reduziu a população da área de 6,7 mil, em 1991, para cerca de três mil habitantes, em 2000.  “Todas as intervenções analisadas se mostraram pouco sustentáveis. As populações foram expulsas para as periferias. E esse excesso produziu espaços-caricaturas”, diz Peixoto. “O interessante é que traços de decomposição foram aparecendo, pinturas foram descascando, como se a cidade que existia antes retomasse aos poucos seu lugar”.

A maior análise já realizada sobre o Minha Casa, Minha Vida traduz, em números, a vantagem de levar moradores aos centros. Batizado de Quanto Custa Morar Longe, os dados levantados pelo Instituto Escolhas, ligado ao Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), serão apresentados no final deste mês, mas uma amostra da pesquisa já dimensiona o problema.

A opção por um modelo como o do Minha Casa, Minha Vida levou a construções em áreas onde não há infraestrutura: sem  hospitais, escolas, saneamento e transporte. As casas,  financiadas pelo Ministério das Cidades, ficaram dentro do orçamento, mas demandaram de outros órgãos sistemas de educação, saúde, saneamento, transporte e segurança. Somados ao longo de uma década, os investimentos  farão com que cada apartamento popular termine custando, aos cofres públicos, o valor de uma cobertura em bairro nobre.

“A questão habitacional é fundamental. A região central de Salvador viveu muitos anos de abandono. É importante que os governos voltem a fazer propostas para as áreas centrais. Mas elas têm de levar em conta a população que se apropriou do espaço”, diz o arquiteto e autor do livro A vida nos centros urbanos (2002), Maurício Memoli, que, em 2012, adquiriu um sobrado no  Santo Antônio Além do Carmo. “O centro é um marco histórico. Morar nele deveria ser um privilégio”.

Em 2014, Memoli e outros arquitetos solicitaram explicações públicas ao Iphan a respeito da extinção do Escritório Técnico de Licenças e Fiscalização (Etelf), criado para agilizar a cooperação entre os poderes estadual, municipal e federal nas questões relacionadas à conservação do patrimônio histórico de Salvador. “O Iphan nunca nos respondeu”, diz Memoli.

 

A questão habitacional é fundamental. A região central de Salvador viveu muitos anos de abandono

Maurício Memoli, arquiteto e autor do livro A vida nos centros urbanos (2002)

 

O fim do Etelf, órgão saudado por arquitetos e urbanistas, esbarra na  torre residencial La Vue, na Ladeira da Barra. A construção, em meio a monumentos tombados, foi avaliada pelo Etelf em 2014, e o parecer emitido opinava pela rejeição do empreendimento, tendo em vista o impacto  na paisagem urbana. Em outubro, no entanto, o Etelf foi extinto. Os empreendedores solicitaram nova avaliação, e o engenheiro Bruno Tavares emitiu parecer liberando o prédio, com mais de 100 metros de altura, com o argumento de que  estava longe do entorno da área tombada.

Três anos depois, o La Vue seria notícia. O então ministro da Cultura, Marcelo Calero, acusou o então ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, dono de um apartamento no local, de pressioná-lo para que a obra tivesse aval do Iphan nacional. O caso, à época tratado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil como uma amostra da “prática de influências na administração pública para proveito pessoal”, levou o Iphan nacional a anular a liberação da obra dada pela superintendência local do órgão.

“O que ocorreu foi uma divergência técnica entre o Iphan local e a direção nacional a respeito da poligonal de tombamento (área localizada na vizinhança dos imóveis tombados)”, diz à Muito Bruno Tavares, hoje superintendente do Iphan na Bahia.  Segundo ele, a extinção do Etelf não findou os diálogos entre os poderes e, há dois meses, conversas entre o Iphan e a Fundação Mário Leal Ferreira foram iniciadas com o objetivo de construir um “regramento conjunto”.

Distante dos gabinetes, há muitos outros cálculos que permeiam o Centro Antigo de Salvador. As contas feitas por “proprietários de palavras”, inquilinos do dia e pequenos comerciantes que fazem dos imóveis abandonados um propósito de vida são, quase sempre, visuais. “Rachadura na horizontal, você pode deixar. Mas um rasgo vertical é sinal de que é preciso providenciar a mudança”, ensina à reportagem uma senhora que vive com os dois filhos, há um ano, num imóvel abandonado. “Olho para o teto e vem o alívio de ele ainda estar lá. Esse é meu ponto de partida, todos os dias”.