Fonte: Ademi
Publicada no Diário Oficial de sexta-feira, a medida provisória 759 terminou engolfada pelas reverberações de uma semana especial. Coincidiu com uma sequência de notícias de destaque: o testemunho do executivo da Odebrecht em que é citado o presidente Temer; o fechamento do acordo de leniência da empreiteira com as Justiças americana e suíça – marco do desmonte definitivo da tese farsesca de que a Lava-Jato seria uma conspiração das “elites” contra Lula -; a aprovação torta na Câmara do projeto de resgate fiscal de estados; e ainda o anúncio do projeto do Planalto de uma séria reforma na legislação trabalhista.
Nesses dias de tirar o fôlego, a MP que visa a regularizar a propriedade em favelas e similares passou de maneira pouco percebida. Mas é um passo elástico na formalização de micronegócios, de ajuda a uma parcela enorme da população – a dos empreendedores de baixa renda, sem acesso ao crédito a custo mais baixo, porque nada têm para dar em garantia ao emprestador. Passarão a ter. Microcrédito e apoio de treinamento não são novidades. Há organizações públicas e da sociedade voltadas há tempos para isso. Inclusive no auxílio à formalização da propriedade. Mas agora é a primeira vez que a União entra em campo de forma direta e ampla, para se envolver em programas de emissão de títulos de propriedade nas comunidades pobres.
Não se trata de uma medida mágica, capaz de por si só remover todos os obstáculos a fim de que dezenas de milhões recebam escrituras, para poderem usá-las inclusive como garantia na obtenção de crédito. As prefeituras, por exemplo, precisarão dar sequência à MP, na instituição de regras para sua implementação.
O fato de a formalização da propriedade passar a ser política de Estado é considerado pelo economista peruano Hernando de Soto como essencial para deflagrar mudanças sociais de forma encadeada. Soto se tornou conhecido por formular sólida tese sobre o poder transformador do direito à posse imobiliária entre os pobres. Como o crescimento de negócios, por meio do acesso ao crédito, melhorias urbanísticas etc., mas sem que o Estado possa se eximir de fazer os devidos investimentos em infraestrutura nas áreas carentes.
O valor dessas propriedades sem dono formal, no mundo, é estimado pelo economista em pouco mais de US$ 9 trilhões – mais da metade do PIB dos EUA. Mas não alavancarão negócios de uma hora para outra. Há um duro trabalho a ser feito pelas autoridades para ressuscitar este dinheiro que o peruano chama de “morto”.
A garantia jurídica que o Estado concede à propriedade é mola propulsora do desenvolvimento nas sociedades capitalistas, em detrimento das autárquicas – de direita ou de esquerda. Basta revisitar os Estados Unidos e a Europa Ocidental, principalmente a partir do século XVIII.
É preciso parar com ilusões sobre a imprescindível integração das comunidades pobres à cidade formal. Enquanto se discute, por exemplo, se o beneficiário de algum programa de formalização de posse pode comercializar o imóvel, o crime organizado se infiltra neste pujante mercado imobiliário clandestino.
Em benefício do estado democrático de direito, os governos constituídos é que têm de regular o acesso à propriedade nesses bairros e em qualquer outro espaço. Deve-se entender como um forte sinal de alerta recente reportagem do GLOBO sobre o avanço de milícias, no Itanhangá, vizinho à Barra, na construção e na comercialização de imóveis na favela da Muzema. O crime tem sido mais rápido que o poder público em reagir aos sinais do mercado. E este é apenas um exemplo.
Em entrevista concedida à GloboNews, em 2006, Hernando de Soto comentou que o grupo de guerrilha peruano Sendero Luminoso – desbaratado posteriormente – distribuía títulos de propriedade em lugares pobres, e com isso angariava forte apoio popular: “Se a propriedade legal não está acessível aos pobres, não haverá um vazio; alguém vai ocupar este espaço.” É o que se vê no Rio.